dimanche, avril 23, 2006

Estupidez

Ele tinha acabado de se formar em medicina e achava-se de uma raça superior. Um tolo, certamente.

Certo dia bateu-lhe na porta uma senhora de idade, que sofria de asma. Deveria ter perguntado-lhe o que tinha. Deveria, mas não o fez. Na verdade, perguntou àquela pobre madame sobre seu plano de saúde. Ao ver que aquela mulher, que vivia de uma parca aposentadoria, não tinha como pagar pelo seu atendimento, simplesmente fechou a porta na sua cara.

Passaram-se alguns dias, até que outra pessoa lhe visitou. Desta vez não era um paciente, mas alguém do Conselho Regional de Medicina, que portava um documento. Depois de pegar uma cópia e dar sua contrafé, sentou-se e leu. A expressão de seu rosto mudava gradativamente de uma mórbida indiferença para uma vívida preocupação. Aquela senhora que o procurara encontrava-se morta. O marido dela havia relatado toda a história ao CRM e agora o médico que não honrara o juramento de Hipócrates corria o risco de perder a sua licença.

Aquele homem havia descido de seu pedestal e começara a chorar. Percebera a besteira que fizera. Percebera sua negligência tirara uma vida. Percebera vividamente que poderia inclusive ser preso por homicídio doloso. Percebera que sua vida acabara junto com a daquela senhora. Arrependeu-se, mas agora já era tarde demais.

Via seu rosto exibido na televisão por repórteres que não demonstravam nenhum dó. Seus colegas lhe viravam as costas no trabalho. No dia de seu julgamento, ninguém estava lá para torcer por ele. Quando ele foi condenado, ninguém chorou. Quando foi encarcerado, os presos o aguardavam, já conhecendo o caso por inteiro, e desejando o mal daquele homem.

Terminava assim, naquela cela de prisão, uma vida promissora, jogada fora por um acesso de boçalidade só comparado à sua tremenda estupidez.

dimanche, avril 16, 2006

Vazio

Faltava algo, mas não sabia o que era.

Havia sido criado por sua mãe e seu padrasto como filho único. O seu núcleo familiar parecia estar completo, mas não estava. Faltava alguma coisa, mas não sabia dizer o que era.

Aquele vazio lhe perseguiu até a adolescência. Quando tinha por volta de quinze anos conheceu seus irmãos, filhos de seu pai natural. Aquele contato de poucos minutos com eles pareceu-lhe preencher o vazio que sentira por tantos anos. Aproveitou aqueles poucos momentos como se pudessem suprir uma vida inteira. Não podiam.

Logo se afastaram novamente. Isso o incomodava demais. Mantinham ainda o contato pela internet e pelo telefone, mas isso não era o mesmo. Queria mais. Queria retomar o tempo perdido e ter seus irmãos perto de si. Infelizmente isto seria pedir demais.

Agora, toda vida que começa a aula de Direito de Família, a depressão bate a sua porta e toma seu coração.

dimanche, avril 09, 2006

Um Sonho Realizado

Entrava no carro naquele dia mágico. Um sonho antigo se realizava. Todo o caminho até seu destino parecia magicamente iluminado. Nunca reparara tanto na beleza de sua cidade.

Ao chegar, viu que muitos estavam como ele, sozinhos, eufóricos, e até um pouco assustados. Eles também realiaram um sonho que há muito tinham em suas vidas. Quase que instintivamente juntou-se a eles.

Pouco depois foi acompanhado por um que era mais antigo. Foi levado, junto aos seus novos colegas, a um outro local. Lá ouviu que deveria se orgulhar de seu feito. Deveria estar muito feliz por está lá. E realmente estava. Olhava para os lados, via rostos sendo pintados, e esperava que o seu também o fosse. Desejava há muito tempo passar por aquela experiência quase ritaulística. Quando aqueles dedos atingiram seu rosto, com a fria tinta guache, sentiu um calor imenso invadir seu corpo, deixando refletir a sua profunda felicidade. Havia conseguido.

Via ao lado aqueles que o acompanharão por muitos anos. Estava particularmente feliz. Tinha a excelente sensação de missão cumprida. Sabia do seu esforço, e agradecia por tudo ter valido a pena. E como valeu.

Uma singela homenagem aos novatos da Faculdade de Direito da UFC de 2006.

samedi, avril 01, 2006

A Triste Vida do Limite

Muitos dizem que a poesia pode ser encontrada somente nas belas palavras que compõem um poema ou uma música. Alguns expandem esse conceito de forma a abranger um quadro ou escultura. Poucos são os que se atrevem a dizer o que vou dizer agora. Também há poesia na matemática.

Os matemáticos de mentes limitadas procuram sempre explicar o inexplicável, procurando acabar com a poesia de sua ciência. Tentam “enchatificar” o floco de neve, o enchendo de equações na vã tentativa de explicar aquilo que não está lá para ser explicado, mas sim admirado.

No entanto, debaixo dessa máscara de aborrecimentos criada por cientistas sem criatividade se esconde um universo tão fascinante quanto o das palavras.

O Pi, por exemplo, ao não repetir nenhum de seus números, reflete com imensa maestria a própria alma humana, complicada, irregular, desconcertante, e o faz de forma muito mais eficiente que muitos poemas.

Já o limite, coitado, tenta eternamente ser um número que não ele mesmo, sem nunca conseguir. Sofre eternamente na busca de ser alguém que na verdade não é. O limite, assim como o ser humano, tem inveja, quer ser o outro, esquecendo de si mesmo e de suas qualidades.

O limite mais invejoso é tão arraigado em nossa cultura que nem o percebemos: o próprio número da besta. Antigamente, quando você queria dizer que um número era infinitamente próximo de outro (e essa é a definição de limite) você o repetia três vezes. Assim, quando João disse em Apocalipse que “aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis”, disse na verdade que o número da besta quer ser o número da perfeição divina, o sete, sem nunca obter sucesso na sua empreitada.

Existe ainda a história do romance entre as retas paralelas, que por um infortúnio do destino só poderão se encontrar no infinito. Mesmo com esse gigantesco empecilho para o seu amor, não conseguem se distanciar uma da outra, permanecendo juntas até que finalmente possam se encontrar.

Os números são repletos de poesia, e da mais alta qualidade. Nós é que devemos estar mais atentos.

Comédias de uma vida cada vez mais matemática.